Resenha: Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos
- Fábio Tardelli
- 10 de ago. de 2020
- 17 min de leitura
Texto por Fábio Tardelli
Esse é o terceiro livro de Vijay Prashad, grande comunista indiano, que leio em menos de 1 ano. E afirmo com tranquilidade que estou, novamente, diante de um material de imensa qualidade e muito bem estruturado do ponto de vista documental e conteúdo.
Se em Estrela Vermelha sobre o terceiro mundo (2019) Prashad já nos deu uma aula sobre a História do comunismo na Ásia e, principalmente, nas regiões da Índia, Paquistão e tangenciando o Japão. Agora, em Balas de Washington (2020) temos uma análise global dos golpes de estado, assassinatos e violações de direitos humanos orquestradas pelo grande Capital imperialista e pelo seu braço, a CIA.

Balas de Washington (2020) é dividido em 3 partes, e é um material curto com uma leitura gostosa sobre a tradição dos grandes marxistas como Eduardo Galeano e Eric Hobsbawm.
Não poderia deixar de citar o papel da indústria cultural e dos meios de comunicação, que como Raymond Willians nos lembra muito bem, são meios de produção e justamente os meios que alimentam visão de mundo dos trabalhadores. Um exemplo, nos filmes de super heróis e guerra vemos a CIA combatendo vilões e tentando conciliar os conflitos, lutando pela democracia [liberal-burguesa], certo? Entretanto no mundo real é ela quem promove uma verdadeira chacina! E se formos levar em conta a instabilidade político-social criada nos países que a sofrem com essas chacinas, não seria exagero chamar de genocídio.
Prashad indaga:
“Qual o preço da bala de um assassino? Alguns dólares aqui e acolá. O custo da bala. O custo de uma corrida de taxi, um hotel, um avião, o preço para contratar o assassino, seu silêncio comprado através de um pagamento em banco suíço, o custo psicológico por ele ter tirado a vida de uma, duas, três ou quatro pessoas. Mas o maior custo não é pago pelos serviços de inteligência. O maior custo é pago pelo povo. Pois nesses assassinatos, nesses homicídios, nessa violência intimidatória é o povo que perde seus líderes, um líder camponês, um líder sindical, um líder dos pobres”
E Prashad continua forte:
“Na indonésia, o preço da bala está no patamar dos milhões; na Guatemala dezenas de milhares. A morte de Lumumba danificou a dinâmica social do Congo, amordaçando sua história. O que custou matar Chokri Belaid (tunisiano, 1964-2013) e de Ruth First (sul-africano, 1925-1982), o que foi preciso para matar Amílcar Cabral (Bissau-guineense e cabo-verdiano, 1924-19730 e Berta Cáceres (hondurenha, 1971-2016)? O que significou sufocar a história para preservar a ordem dos ricos? Cada bala disparada derrubou uma revolução e deu luz à nossa barbárie atual.”
Estamos diante de um livro forte, que sozinho pesa mais que centenas de pesquisas esvaziadas nas universidades brasileiras perdidas em pós modernismo, positivismo e marxismos sem práxis. E não é esse o sentido da luta? Qual o sentido de afirmar uma pesquisa critica? Pois produzir materiais fortes é justamente o sentido da Batalha das Ideias que Fidel nos legou!
E se o Império nos esmaga e nos mata levando sofrimento às periferias do mundo, às vezes leva uma verdadeira surra. Citando a passagem de Prashad sobre Ho Chi Minh na Guerra do Vietnã: “derrubem mais aviões dos Estados Unidos e estarei com a melhor saúde”. Exaltemos o legado de Ho, Giap e os vietnamitas!
Mas, quando não vencemos, é sempre necessário levantar a memória dos que caíram. Pois foi com a cabeça alta que se entregaram à luta: “Eu sou Revolucionário queniano, um ser humano que se levanta contra as guerras coloniais ilegais, meu sangue regará a árvore da independência” disse Kimathi, líder queniano à sua esposa Mukami, antes de ser executado por agentes britânicos.
Na primeira parte sua abordagem tem como ponto de partida o Super Man e a Liga da Justiça, com perdão para licença poética, esmagando os “selvagens” e sua soberania. Ou seja, os Estados Unidos esmagando terras da América Central e as potências da Europa esmagando na Ásia e África.
Porém esse processo não se dá só no aspecto externo. Se a burguesia é nossa inimiga de classe, imagina quando nos referimos à fração mais nojenta e entreguista dela: a dependente do capital estrangeiro. Já houve intelectuais brasileiros que defenderam a burguesia nacionalista como aliada em projeto nacional, equívoco teórico dos grandes.
Sem nenhum escrúpulo as burguesias desestabilizam políticas mundo a fora (como no caso de Allende no Chile, com o financiamento de mais de 8milhões de dólares para protestos contra o então presidente chileno, que levaram à tomada de poder por Pinochet e a mais brutal elite) ou mesmo o caso recente da Bolívia (em que a mídia liberal não demorou a se alinhar com fascistas e lá estavam BBC, El país, The Intercept atacando a “ditadura de Evo”, no final, como vimos, a contestação eleitoral pela direita boliviana era fraude, derrubaram Evo e deram um golpe sem sequer cogitar tempos para novas eleições, mais que isso em plena pandemia do covid-19, desvios de recursos dos hospitais públicos para setores militares e elitistas).
O autor busca a origem de toda falácia liberal sobre “liberdade dos povos” e “iluminação divina” chegando até meados do século XIX na Conferência de Berlim (1884-1885), na qual as potências imperialistas-capitalistas da Europa dividiram a África, e vai até o Pacto da Liga das Nações (1919), no qual essas nações imperialistas se denominavam “Nações amantes da paz”. Nada de novo, as nações ungidas por Deus para civilizar o mundo e levar paz. Claro que não sem balas.
Desde o massacre de Jallianwalla na Índia com mais de mil mortos em um dia e os massacres no Quênia [que foi uma verdadeira guerra genocida], ambos cortesia inglesa, até os Estados Unidos matando no Haiti e Nicarágua, impondo miséria e violência.
Nas palavras de Castillo Armas, coronel responsável pelo golpe na Guatemala em 1954, em ação orquestrada junto à CIA: “Se for necessário transformar o país em um cemitério para pacificá-lo eu não hesitarei em fazer isso”.
Aliás, pros liberaizinhos que caíram perdidos aqui, seu “estadista talentoso” Winston Churchill não passa despercebido ceifando paquistaneses. O contexto pós Segunda Guerra é muito importante para a metade do capítulo 1 de seu livro e, obviamente, para o nosso contexto também. Falando desde a fundação da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], às relações nos bastidores da ONU que vão desde a omissão sobre o impacto dos Estados Unidos violando soberanias e tratados internacionais até a forma como a URSS segurou com 56 vetos as ações estadunidenses na Coréia do Sul.
A política de propaganda anticomunista também é bem destacada, nas palavras de Henry Cabot Lodge Jr (embaixador dos Estados Unidos na ONU):
“Pinte os soviéticos como imperialistas, novos colonialistas. Ela converte impiedosamente todos os territórios sobre os quais adquiriu domínio, em vassalos do Estado soviético”.
Isso em 1953 ano que a CIA derrubou o governo democrático de Mohammed Mosaddeq do Irã. Inclusive, até hoje, esse marco assola o Irã com governos autoritários, ditaduras semifascistas, burcas e afins (recomendo verem o filme franco-iraniano chamado Persépolis ou mesmo o pesado drama iraniano Tartarugas Podem Voar), isso sim é uma relação de vassalagem... “Time is Money”.
Outro fator importante desta propaganda, muito vista até os dias de hoje, está em desconectar e esvaziar as pautas antifascistas. Quem esmagou a máquina de guerra nazista, é bem sabido pelos historiadores foi a União Soviética, porém vá em Salto de Pirapora ou Piedade, cidades do interior de São Paulo, a percepção do professor, do advogado, do médico ou seja do cidadão médio é outra.
Não é à toa que a imprensa de direita e grupos do Brasil e Estados Unidos passaram meses aí de 2020 bombardeando os grupos antifascistas. E a pós modernagem toda, lacaios teóricos desse processo imperialista sanguinário, ressuscitando a velha teoria liberal da ferradura, dizendo que “comunismo = nazismo”, e o caminho seria não a "selvageria de nossos corações igualmente extremistas," mas sim as “nações amigas da paz”.
Retomo a questão dos intelectuais e o peso da pesquisa de Prashad porque, justamente diante das manifestações antifascistas foi quando o espectro pós moderno se manifestou em meio ao esquerdismo e a esquerda liberal, e muitos intelectuais pós modernos trabalhavam em esvaziar essa luta. Quem esvazia a luta antifascista é agente fascista. E Balas de Washington está aí para comprovar.
Para irmos encerrado a parte 1 do livro, recorro à mais uma citação, agora, sobre a organização da OEA [Organização dos Estados Americanos] em 1948, cuja primeira reunião aconteceu em Bogotá (Colômbia):
Enquanto Marshall estava sentado com líderes de alguns Estados do hemisfério, um homem armado matou a tiros, em 9 de abril de 1948, Jorge Gaitán, candidato à presidência que era um defensor dos pobres da Colômbia; não muito longe, uma missão do Banco Mundial liderada por seu presidente, John J. McCloy, estava na cidade para fornecer cobertura intelectual não para um Plano Marshall, mas para aprisionar a economia da Colômbia na teia de corporações transnacionais dos EUA e nas contas bancárias da oligarquia colombiana. As pessoas foram às ruas de Bogotá, frustradas com o assassinato de Gaitán; inquietação conhecida como Bogotazo. Marshall, dentro da reunião da OEA, disse que esses protestos foram “a primeira tentativa comunista importante no hemisfério ocidental”. Ele estava errado sobre isso. Foi um outro suspiro de um país que enfrentou, desde 1948, uma terrível fase de violência conhecida, precisamente, como La Violencia; a oligarquia colombiana simplesmente não permitiria que as massas entrassem na história e usaram, portanto, todo arsenal do poder do Estado para eliminar a esperança de seu país. Em nome do anticomunismo, a oligarquia colombiana subordinou-se a Washington.
As páginas finais dessa parte se dedicam a debates sobre a Internacional Socialista desfeita em 1943, em decorrência da Segunda Guerra Mundial, e das orquestrações soviéticas afim de manter um pouco de estabilidade às nações periferias.
E é óbvio que enquanto estuda golpes e assassinatos de reputação até assassinatos nas vias de fato, não ia passar sem mencionar a mãe liberal desse tipo de façanha: Hannah Arendt. Sim sua publicação de obra em 1951 foi base teórica fundamental para consolidar o termo “mundo livre” do então presidente dos Estados Unidos Henry Truman.
O “Mundo Livre” era o mundo liderado pelos Estados Unidos. O que os EUA defendiam era a liberdade; seus adversários eram as forças contra a liberdade
E foi em nome do mundo livre que os Estados Unidos apoiaram ditadores e fascistas que suprimiram revoltas populares, sindicatos, e foi apoiando o “Mundo Livre” que fuzilaram e depois derreteram Lumumba no ácido, mataram Caral, Sankara, Che, tentaram matar Fidel Castro 24 vezes (conforme a própria CIA admitiu) ... Vale lembrar que o faz de contas liberal e pós moderno também não coloca que mesmo dentro dos Estados Unidos liberdade não passa de uma estátua no litoral.
Repressão ao movimento negro. Genocídio indígena. Perseguição de sindicatos. Cassação de partidos de esquerda. Encarceramento das massas.
Em 1975, os vietnamitas haviam derrotado os EUA, e Portugal foi derrotado por suas colônias africanas. Cuba conseguiu sobreviver, apesar de todas as tentativas de derrubar aquele governo. Não há dúvidas de que a Revolução dos Cravos em Portugal não teria ocorrido para derrubar o Estado Novo, em 1974, sem as guerras de libertação nacional em Angola, Cabo Verde e Moçambique. Não há dúvidas de que, duas décadas depois, o regime do Apartheid da África do Sul não teria caído sem a vitória das forças de libertação angolanas, em aliança com os cubanos contra o regime da África do Sul na batalha de Cuito Cuanavale, em 1987-1988. A democracia em Portugal e na África do Sul foi tomada pelas armas. Não foi dada pelo liberalismo. Esta narrativa está agora enterrada. Tem que ser revivida. Não apenas os sons do campo de batalha, mas também as histórias dos médicos e técnicos, dos programas revolucionários de educação em Moçambique e Cabo Verde. A tentativa de construir uma nova sociedade a partir dos detritos da ordem colonial. Esta foi a energia revolucionária que agora está esquecida
Na segunda parte o livro muda muito de dinâmica. Introduz o golpe estadunidense na Guatemala de Arbenz em 1954 e disseca bem o processo, porém foca muito mais em nove subcapítulos que se estruturam nesses dados para criar um “manual de como dar um golpe de Estado”.
Aqui vemos uma análise baseada em diversos processos de Golpes como os casos da Guatemala, de Allende no Chile, Lumumba no Congo, Nkrumah em Gana, e Evo na Bolívia, até as tentativas fracassadas em Cuba, Vietnã e Venezuela.
Percebemos inclusive uma pequena semelhança com o Brasil. Mas alguns dos pontos desse manual nunca precisaram ocorrer aqui, porque nossa realidade histórica e ethos escravocrata, manifestado na nossa burguesia é tão forte que nem precisamos da CIA para gerar propaganda anticomunista. Já temos nossa porção de lunáticos anticomunistas e antirrepublicanos como caso de Sampaio Dória, acusando os BARÕES DO CAFÉ de serem COMUNISTAS INFILTRADOS (livro: O comunismo caminha no Brasil, 1933). Ou como a imprensa negra integralista, que na Primeira República promovia debates extremamente racistas sobre “ como o negro devia se comportar na sociedade para atender a demanda dos homens de negócio (brancos)”, dados que Clóvis Moura, brilhantemente, encontra.
E vemos até que a própria esquerda liberal brasileira cita e recita vários autores que servem de base para teorias imperialistas como os já citados Arendt, Popper ou até mesmo um Mbembe. Só pegar roteiros de cursos de graduação para ver que a lista de autores liberais é imensa. Nós nem precisamos de algumas etapas como a 2 Escolha o homem certo em campo, a 3 Garanta que os generais estejam prontos ou a 4 faça a economia gritar. Aqui Twitter de general coloca a democracia burguesa à prova.
De qualquer forma, o primeiro ítem “fazer lobby junto à opinião pública” é sempre um fator em comum, e aí sim o Brasil é bem comtemplado. Prashad comenta a respeito da mídia liberal estadunidense como New York Times, Chicago Tribune e Time inclusive matérias encomendadas pela CIA e até mesmo uma empresa bem familiar para quem já leu As Veias Abertas da América Latina: a United Fruit. O livro traz uma matéria publicada no New York Times (1951) e SEM ASSINATURA de AUTOR, mas em favor da intervenção dos Estados Unidos na Guatemala:
“Não podemos esperar que um maia, vivendo em uma vila ancestral no alto das colinas, incapaz de ler, isolado das principais correntes mundiais, reconheça por instinto o comunismo como apenas outro sistema de escravidão” a matéria faz a típica descrição liberal do “nativo pueril macunainesco” que aparece também nas falas de gente como Ricardo Salles Ministro do Meio Ambiente do Governo Bolsonaro, que fala das “ideologias que permeiam o movimento indígena do Brasil”. E nos dias atuais os jornalistas e a opinião pública continuam dizendo que o perigo são os comunistas, enquanto garimpeiros e multinacionais esfolam terras e povos e cometem verdadeiros massacres.
Abordagem parecida com a das mídias liberais atuais como Globo, El Pais, BBC e The Intercept, que criticam o fascismo de Bolsonaro apenas pelo lado que a afeta inclusão de minorias no mercado, e nunca as violentas propostas econômicas precarizantes de Paulo Guedes, mesmo que atinjam estas mesmas minorias. Tentam de tudo para equivaler governos como os de Venezuela ou Coreia do Norte usando termos como “regime” enquanto que fascistas como Trump, Kolinda Grabar e Bolsonaro exercem “governos”, ou quando no mais, são comparados das maneiras mais estranhas e esses mesmos países. E não é raro ver até mesmo esquerdistas fazendo o mesmo jogo.
Aqui há dois pontos centrais que não podemos ignorar: o papel que os intelectuais e a religião, ou mesmo a esquerda liberal tem na formação de uma ideologia liberal nas classes trabalhadoras.
Aos intelectuais cabe duas observações: A primeira é a ligação de Karl Popper e sua “teoria da verdade” e análise de “teorias da conspiração”, que legitima os ataques dos Estados Unidos na Indonésia e Guatemala e sufoca as denúncias como meras teorias da conspiração, enquanto em um morriam mais de meio milhão de pessoas e no outro estabeleciam uma ditadura sanguinária.
“A ideia da teoria da conspiração foi usada para deslegitimar a investigação genuína do comportamento secreto pelo governo. A fé implícita na bondade do poder dos EUA gerou a visão de que seu governo nunca usaria meios ilegais para garantir seus fins e que, se houvesse alguma sugestão de que haviam fomentado um golpe, essa sugestão seria descartada como teoria da conspiração”
E a segunda, o financiamento que a CIA, a Fundação Ford, e outros grupos empresariais, dão para pesquisas acadêmicas de progressistas não comunistas. O objetivo foi fortalecer a presença de liberais de antimarxismo dentro da própria esquerda. Prashad lembra que em 1967 foi revelado que a CIA financiou o projeto de Liberdade Cultural no Congresso dos Estados Unidos, resumido na criação de revistas em países periféricos como Nigéria, Líbano e Índia, uma empreitada de filmes, empreendimentos locais e promoção da religião sobre a razão. É aqui que apareceu o germe do conceito atual de empoderamento, com uma forte origem liberal-capitalista.
No campo religioso temos também a perseguição à Teologia da Libertação, e a questão aqui é bem mais violenta e incisiva com inúmeros estupros de freiras e assassinatos de padres na América Central. Se Popper, Arendt e demais estavam nos corredores das faculdades fazendo a linha de frente liberal, a força empregada no campo de combate religioso foi muito mais visceral.
Padres e freiras da Teologia da Libertação estavam no campo, nas periferias... Mas, nesses lugares, ninguém conta os mortos, pelo contrário, dão respaldo à estrutura capitalista chamando esses números de teorias da conspiração. A coisa foi brutal na Guatemala, em El Salvador, Haiti, Colômbia... E a Igreja em si, inclusive o papa João Paulo II, brincava de cabra cega porque sabia que a Teologia da Libertação era um perigo para sua aliança com o Capital, temiam o avanço do ateísmo comunista ou as possíveis relações de um cristianismo com o comunismo.
Sua ciranda é dançada sobre sangue.
Não é à toa que, mesmo após nos dar uma ponta de esperança passando pela década de 1970 com a emancipação de Moçambique, Guiné-Bissau, Angola e Cabo Verde, a parte 2 ainda se fecha com o assassinato de Thomas Sankara. Líder nacionalista, ligado à esquerda que desafiou o FMI no final dos anos 80.
O FMI ainda também impactou Peru, Bolívia e Zâmbia. Seu modo de ação gerava incômodos até mesmo na CIA. Extorquir povos até a miséria em nome de aristocracias locais e do capital internacional, levava o povo à fome, mas também forçava às massas a abraçarem as lutas sociais eclodindo em greves e organização de movimentos sociais populares. De toda forma fica nítido que enquanto a CIA prefere algo mais ideológico e com algumas balas enquanto que, o FMI usa bancos, fome e miséria em massa.
Os amigos liberais podem escolher. Nós, o povo, temos a luta de classes.
A terceira parte começa entre os anos 80 e começo dos 2000. Indo desde a chacina assumida de mais de 500mil crianças mortas no Iraque, e a destruição e desindustrialização que acompanhou esses ataques, no governo de G. Bush até Obama pressionando e esmagando politicamente parlamentares japoneses, de esquerda, que queriam tirar as bases militares dos Estados Unidos do Japão (com inclusive denúncias de pedofilia e estupro). O fim da União Soviética foi como um cheque em branco para atuação política desastrosa dos Estados Unidos que agora busca conter a ascensão de qualquer nação que que não seja submissa ao seu império.
A mídia continua do lado do capitalismo. Os intelectuais também. Mas nas justas palavras de Yanis Varoufakis, Ministro das Relações Exteriores da Grécia: "os golpes no período atual não são necessariamente de tanques; eles geralmente vêm de bancos”.
Isso quando não são híbridos como o caso de Thomas Sankara de Burkina Faso, assassinado por enfrentar o FMI.

Vemos uma volta com força total da tática de ter bases em diferentes países e treinar militares locais, o que os coloca sob a tutela dos Estados Unidos. Essa estratégia foi a base das ações dos anos de 1950 até 1980. Agora, principalmente agora com os investimentos em tecnologias bélicas como drones a coisa tem se ampliado.
Costumamos pensar que muita coisa de lá para cá mudou, mas é importante ver que; se nos anos de 1960 o imperialismo, com tecnologia de ponta e serviços secretos, desestabilizava países que o desafiassem, e ainda massacravam seus movimentos populares internos como o movimento negro ou LGBT, a coisa na verdade continua exatamente igual ainda hoje. Até mesmo internamente do Império com seus confederados massacrando a população negra (a resposta violenta da força policial nos Estados Unidos ao Black Lives Matter foi um exemplo disso) e demais setores sociais enquanto bombardeia Ásia e África e desestabiliza políticas na América Latina.
O primeiro tipo de golpe são os tanques, o segundo tipo são os bancos (como denunciado por Varoufakis) e o terceiro tipo são as ONGs. E no livro são elas que agora dão as caras. O caso analisado é a devastação política financeira imposta pelo imperialismo no Haiti e o controle que as ONGs ligadas ao capitalismo internacional exercem nesse país.
As ONGs infiltram-se fazendo a manutenção e a legitimação da interferência imperialista, para tapar a ferida dos problemas sociais que o próprio imperialismo criou, como dificuldades econômicas, de atendimento de saúde, educação e etc. Mas como os Estados Unidos criou algo no Haiti? Vide o caso do ditador haitiano Duvalier, que se manteve no poder por mais de 30 anos sob apoio do governo dos Estados Unidos. E quando não foi mais conveniente foi derrubado.
A operação segue exatamente a mesma cartilha apresentada na segunda parte do livro, só que em vez de golpes com figuras grotescas como Pinochet e Duvalier, a coisa pode ser resolvida com a bandeira do arco íris na logomarca de uma empresa ou ONG. Ou seja para o tipo 3 de golpe se aplicar, normalmente precisa ter uma pavimentação feita seja por militares ou pelo FMI.
Sabe o que isso me lembrou? A esquerda liberal se matando de defender ONGs que se estranhavam com presidente Jair Bolsonaro. Como se as ONGs fossem a expressão de movimentos sociais populares legítimos... como movimentos indígenas, MST e afins. Ali meus caros liberais, nada mais era que conflito de frações de classe burguesa.
Ao final Vijay dedica várias páginas a detalhes documentados das tentativas de golpe na Venezuela, ao golpe jurídico no Brasil (com impeachment de Dilma Rousseff e afastamento de Lula) e ao golpe contra Evo Morales na Bolívia que, inclusive, contou com “erro” de informação da OEA ao divulgar que houveram “mudanças drásticas e difíceis de explicar na tendência dos resultados preliminares após o fechamento nas pesquisas”. Ou seja, deram um golpe em Morales porque os números não foram os mesmos que a mídia burguesa queria que fossem, com os votos inflados no oligarca Carlos Mesa, e então acharam injusto terem uma "surpresa".
Morales ainda foi perseguido pelos militares pois vinha combatendo a corrupção policial e militar.
“No entanto, as principais autoridades americanas e a oligarquia boliviana se basearam na alegação da OEA e tentaram anular os resultados das eleições. Foi com fundamento nisso que a direita convocou sua base de apoio para encher as ruas, e foi com fundamento nisso que as forças policias decidiram se recoltar. O papel da OEA e do governo dos EUA em dar legitimidade ao processo de golpe foi fundamental”
Nem, Ringo, o cãozinho de Morales, foi poupado. Estava na casa de Morales, que teve que fugir de aonde estava, e os militares o mataram em nome do Cristo e da civilização.
E com trecho da história de vida (e morte) do poeta Otto René Castillo (1934-1967), queimado vivo com sua esposa por militares estadunidenses e milicianos guatemalenses, Prashad encerra toda sua denúncia para, por fim abordar a questão das fontes e documentos. Eis um trecho da obra do poeta:
O mais bonito
Para aqueles que lutaram
Sua vida inteira,
É chegar ao fim e dizer:
Nós acreditamos no homem e na vida
E a vida e o homem
Nunca nos decepcionam
Esse livro, que ainda recebeu o cuidadoso prefácio de Evo Morales (ex presidente boliviano), é sem dúvida o mais denso que li em 2020. E olha que esse foi o ano das leituras vastas e densas, ano em que livre da burocracia do mestrado e das diretrizes morno-críticas do Ensino Superior brasileiro, pude aprofundar autores que jamais poderia trabalhar em uma dissertação.
2020, passei por Clóvis Moura, Jacob Gorender, Amílcar Cabral, Thomas Sankara, Mao Zedong, Ho Chi Mihn, E.P. Thompson (esse mais aceito pelos intelectuais pois não raro lhe roubam seu trabalho e lhe tiram a criticidade, coisa que passou a vida lutando contra) entre tantos outros incluindo o próprio Vijay Prashad. Mas “Balas de Washington” (2020) me tocou muito mais densamente por uma razão: ele é a síntese do FINAL de vida de muitos desses camaradas que estou estudando e me aprofundando.
Ler sobre eles, ler suas ideias é motivador, organiza o pensamento e encoraja.
Vijay traz o destino de muitos deles e normalmente foi um destino brutal. Quando não são ostracizados justamente por intelectuais que passam suas vidas dedicadas em estudar e enfiar no ensino superior as teorias e autores da CIA, usados para esmagar “meus heróis”.
Hannah Arendt, Popper, Mbembe... eu não os li em movimentos sociais populares. E sim no Ensino Superior, na Universidade Pública. Nas aulas de pessoas que aleatoriamente acusam Florestan de “machista”, Marx não escreveu o Capital e plagiou... Se hoje sofrem com ataques do bolsonarismo não deixam de ser diretamente responsáveis pelo processo pois desarmam intelectualmente a classe trabalhadora e seguem o mesmo jogo que vem segregando há séculos.
Por isso “Balas de Washington” é sem dúvida uma leitura essencial. E aqui me concedo o direito de trazer um outro livro para citar, mas pela dimensão do citado vocês entenderão:
“Os liberais consideram os princípios do marxismo como dogmas abstratos. Aprovam o marxismo, mas não estão dispostos a pô-lo em prática, ou pô-lo integralmente em prática; não estão dispostos a substituir o liberalismo pelo marxismo. Armam-se tanto de um como de outro: falam de marxismo, mas praticam liberalismo; aplicam o primeiro aos outros e o segundo a si próprios. Levam os dois na bagagem e encontram uma aplicação para cada um.”
E Mao Tsé Tung cai como uma luva na discussão e reflexão final do papel dessa esquerda liberal. Esquerda liberal não é comunista, nada mais são que liberais.
Vijay não inventa a roda. Ele explica por um processo o labirinto que enfrentamos. Processualmente. Visceralmente. Se ao final dele (ou dessa resenha) você não sentir necessidade de se organizar, se ainda faltar mais alguma razão... você é parte do problema.
Esse livro custa 30R$ na Editora Expressão Popular e você ainda ajuda a organizar os movimentos aos quais essa editora se vincula como a Tricontinental de Vijay e o MST.
Recomendado! Pelo selo “Prolecast de aprovação” ^^
“A principal contradição no período depois da Segunda Guerra Mundial [...] estavam entre as forças de descolonização (que incluíam a URSS quando se aliava aos movimentos de libertação nacional anticolonial) e o imperialismo”

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